terça-feira, 10 de outubro de 2017

A morte

Há pouco senti a morte, seu escuro silêncio parecia passear entre os homens, entre as árvores, como se parasse o vento, um peso que oprimia por escapar aos cálculos humanos. Senti como se visse seu rosto, seus olhos negros fixados nos meus, em meu coração, desejosa de ver-me içar minhas âncoras como aquele que eu vira partir. Seu manto negro a roçar os corpos dos vivos fazia-me estremecer, seu terror me atravessava e meus pensamentos, numa espiral de memórias e projetos, de sonhos e frustrações, perdia-se naquela contemplação fúnebre, entorpecida pela melancolia, porém transfigurada por uma estranha luz que irradiava do centro daquele turbilhão que me fazia vislumbrar uma pequena parte do futuro que nos espera a todos.

O manto negro da morte esconde uma esperança, sua aparência aterroriza, mas rompe fios, cordas e correntes que nos mantêm cativos de nós mesmos. Àquela visão, perguntava-me o que restaria de mim, o que eu levaria daqui. Restará uma lembrança que não durará muito e não levarei nada, só a mim mesmo, todo o resto ficará esquecido para sempre. A morte não tem memória, não tem passado, não tem história, só os vivos as têm e são elas que os fazem quem são. Como, então, escolher uma morte que não nos tire a vida, uma morte que ao nos encontrar nos cubra com o manto negro do esquecimento e revele a esperança outrora oculta aos nossos olhos? Como escolher a morte e alcançar pelo desejo o que alcançaremos por necessidade?

Aquele vislumbre das sombras abriu-me os olhos para ver a luz que essas mesmas sombras ocultavam, uma luz que não se irradiava sobre mim, mas dentro de mim, uma luz que me atraía e me impulsionava a desejar aquela morte, antecipá-la cobrindo com ela meu presente e minha história, esforçando-me por romper já os fios, cordas e correntes que me mantêm cativo de mim mesmo para que, quando eu vir a morte aproximar-se de mim, já não haja âncoras para içar e eu tenha deixado meu porto e meu destino esteja perto já antes de partir.