terça-feira, 17 de março de 2015

O dom da gratuidade

Tenho por certo que o amor é sempre incondicional. Não há face mais autêntica do amor do que aquela que revela cuidado sem esperar absolutamente nenhuma recompensa. Eis o que Deus me fazia pensar quando abracei um bêbado, homem acostumado à rejeição, perdido no meio da história que contava sobre o assassinato da filha e o torpor do álcool, embriaguez que julguei ser uma tentativa de fuga da dor da perda da filha. Acolhi-o, sem sentimentos, sem afeição, sem gostar do que fazia, fui movido por uma força que me fazia agir segundo a ordem que me deu o Senhor: ‘eu não tenho o direito de não servir’. Nesse contexto, era fácil duvidar da autenticidade daquela história, e parecia justificável recusar ajuda, mas o que o Senhor queria ensinar-nos, a todos que lá estávamos, prevaleceu sobre meus medos.

Providenciamos para ele o que pudemos, considerando verdadeira a história que nos contara e, enquanto ele nos falava e nos abria seu coração, um desejo não abandonava o pensamento: deixá-lo aos cuidados da Toca de Assis. Porém, tomamos outro caminho, e o levamos até a rodoviária para que embarcasse para Rubiataba, no estado de Goiás, cidade onde sua filha seria sepultada, mas encontramos o guichê da empresa de ônibus fechado. Realizou-se então aquele meu desejo primeiro, o levamos à casa da Toca de Assis e o entregamos a mãos mais apropriadas que as nossas para que cuidassem dele. Durante todo o tempo assaltava-me a dúvida a respeito da autenticidade do que aquele homem nos contara, e me atormentava ainda mais o pensamento o fato de ele ter-se identificado por três vezes com nomes diferentes.

Pouco tempo depois, já dentro do ônibus, a caminho de casa, o tumulto daquela “ocupação” cessou e a Palavra de Deus fez minha alma chorar com uma simples pergunta, que calou todo julgamento: ‘porque esperas recompensa?’ A recompensa que eu esperava era o “fruto de nossa caridade”. Vaidade. “Se o fizesse de minha iniciativa, mereceria recompensa. Se o faço independentemente de minha vontade, é uma missão que me foi imposta.” (1Cor 9, 17) Se espero recompensa coloco minha confiança no meu ato, não na graça de Deus. Devo desejar e esperar que ele ame a Deus, mas não posso desejar ver isso, ainda que o veja, isto já seria minha recompensa. Ai daqueles que já aqui tem sua recompensa! (Mt 6, 2)

Eu precisava deparar-me com alguém que não “merecia” amor para aprender tudo isso. Palavras que descrevem este amor estamos fartos de ouvir, mas somos tardos em colocá-las em prática. Depois de tudo eu pensava: Graças a Deus ele pôde ver o amor cristão. Eis a vitória de Deus, não fui eu que o acolhi, mas fiz, de algum modo, as vezes de Cristo para aquele homem. Não me orgulho disso, porque meus sentimentos traíam o que aquele homem deveria experimentar. Alegro-me, porém, porque Deus sabe usar de nossa incapacidade, e oculta aos Seus amados mais pobres a miséria de Seus servos, para que apareça somente Seu infinito Amor.