sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Rei humilde

Demos-te umas pobres palhas
e um teto pobre, alguém que
pôde redimir nossa raça
e dar-te um abrigo, ignorava,
porém, quem eras, ó rei

Nascias naquele dia, estranho,
em viagem fugias levado num
burro, tua mãe em suspiros,
teu pai, homem justo, sequer
imaginava quem serias

Rei nascido tão pobre, eis
nossa devoção, demos-te
pouco naquele que te deu
a manjedoura por berço
sem prever o que farias

Ei-lo, o Rei ainda menino
e já soberano, excelso tão
pequeno, inábil ainda, pouco
menos que nós, ei-lo abaixado
e nós ainda exaltados

Rei misturado a seus súditos,
disfarse perfeito, descobre-se
velando-se e descobre-nos tudo,
eis-nos desnudos, vê-nos o Rei,
nada lhe está escondido

Agora que o vimos, que faremos?
Eis-nos rendidos, não fez caso
do pouco de nós recebido e deu
de si tudo, fez-se um de nós,
fez-se o nosso melhor

Dar-te-emos, ó Rei, nossa vida,
um berço melhor, coroa de ouro,
o que outrora era nosso, nosso
roubo, é teu em verdade, pois
que nosso coração tu roubaste

quinta-feira, 24 de setembro de 2015

O lugar do silêncio

Qual é o lugar do silêncio? Podes entender esse "lugar" como uma metáfora, uma imagem que te faça pensar na importância que dás ao silêncio. Podes também imaginar um espaço, como uma igreja, um parque, teu quarto, um cemitério, uma biblioteca ou algum outro em que seja possível fazer certo "silêncio material". Há que se considerar todas essas coisas, mas uma outra é mais importante. O silêncio é uma atitude interior, uma disposição de nosso corpo e de nosso espírito, o oportuno recolhimento de nossas faculdades para nos voltarmos inteiramente para nós mesmos, numa serena contemplação de nosso mundo interior. Aí deparamo-nos com tudo o que fazemos orbitar ao nosso redor, os barulhos interiores aos quais, nessa hora, não devemos nos submeter, nossas fadigas e angústias, nossa imaginação e fantasia sugerindo-nos inúmeras ocupações para nosso pensamento, o incômodo de ouvir nossa própria voz, de dar ouvidos às nossas inquietações mais secretas. Aí encontramos Deus, ouvimos Sua voz, sacramentada em nossa consciência, instando-nos a acolher sua graça a fim de que nos assemelhemos a Ele na comunhão com Sua vontade. Nesse ponto podem ajudar-nos aqueles meios há pouco enumerados, o tempo e o espaço que dedicamos a esse exercício, mas, faltando-nos estes, não pode faltar-nos decisão, resiliência, persistência, desejo, liberdade.

Olhar para si mesmo talvez não seja fácil, sobretudo quando à nossa volta tudo parece concorrer para fazer-nos olhar para fora, ver o mundo, preocupar-nos com tudo e com todos a todo tempo enquanto justifica suas propostas com o prazer anestésico da dissipação e da distração. É onde muitos se perdem, acreditando que o silêncio seja mágico e instantâneo, tal como o mundo quer fazer-nos crer que devem ser todas as coisas. Ao contrário, descobre em ti mesmo o lugar do silêncio, deixa crescer em ti o desejo de encontrá-lo e procura-o, incansavelmente, até que o encontres. Persevera em tua busca e não te rendas ao cansaço ou ao desânimo, esforça-te, supera os limites que julgas ter, corre além do que te julgas capaz de correr: tuas forças se esgotam sempre depois do que podes prever. Não te poupes, esforça-te ao máximo sem desistires, até que caias, esgotado, sem forças, por te haveres gastado totalmente.

terça-feira, 15 de setembro de 2015

Assombro

Não percais o assombro, não vos torneis insensíveis à multiforme graça de Deus que se nos manifesta de diversos modos, velada naquilo que se nos tornou comum. Não percais o assombro!

De fato, Deus jamais se esconde, mas manifesta-se sempre, é sempre visível e sempre sensível, nunca oculto, porém velado, e embora seja infinito e inacessível a nossos olhos e ouvidos (cf. 1Cor 2, 9), em suma, aos nossos sentidos todos, é, no entanto, manifesto inequivocamente a todo homem em toda parte: "Desde a criação do mundo, as perfeições invisíveis de Deus, o seu sempiterno poder e divindade, se tornam visíveis à inteligência, por suas obras; de modo que não se podem escusar". (Rm 1, 20)

Não percais, porém, o assombro! Por perderem a capacidade de maravilhar-se, muitos imaginam que Deus seja invisível e ausente. Por perderem a capacidade de maravilhar-se, muitos vivem ávidos por novidades e espetáculos, artifícios que entorpeçam a razão e os sentidos. Por perderem o assombro, muitos se afastam do Evangelho e fecham seus ouvidos à voz de Seus arautos, ignoram a Palavra divina, reputando-a como antiga e já passada, mera literatura e construção artificiosa da habilidade humana. Muitos há enfadados pelas palavras seculares do Evangelho, nunca alterado e perene. Muitos há que, esquecidos da essência da Boa Nova de Cristo, entre pregadores e ouvintes, procuram em palavras que escondem o mistério descobri-lo por si mesmos, tentando fabricar o maravilhamento, essencial à experiência do sagrado, por meio da jactância.

Não percais o assombro! Maravilhai-vos com a permanente atualidade do Evangelho, nunca obscurecido nesses quase vinte séculos de história desde que pela primeira vez um ser humano pôde ouvir o que antes jamais se pudera ouvir. Nunca Deus parecera tão próximo, visível como se fora criatura, Deus imanente e transcendente, verdadeiramente presente.

Falo também a mim mesmo. Fiz da literatura meu ofício, ministério que escolhi depois que a hesitação mudou-se em desejo, inclinação e, finalmente, ato. Minha obra, a escritura, poderá ser possível apenas se revestida de elementos que, por si mesmos, causem o assombro? Artista, exponho-me ao risco de pretender tornar-me em boa nova e chamar a atenção para minha palavra e não para a Palavra, o Verbo divino que supostamente pretendo dar a conhecer. Minha condição impõe-me um risco do qual não me esquivo e por vezes impõe-me um silêncio incômodo que me pressiona; a inércia, porém, não é próprio da virtude.

sábado, 8 de agosto de 2015

A misericórdia

A misericórdia é a virtude daqueles que se deixam ferir e despedaçar por suas próprias fragilidades, daqueles que tem o coração rasgado, aberto para acolher, para olhar o outro e amar. A misericórdia é dom de Deus, fruto da caridade, que é o próprio Senhor, é sinal inequívoco da ação de Deus. Deus é misericordioso por natureza, seu amor infinito e incondicional só pode ser entendido assim, sobretudo quando contemplamos, inevitavelmente deslumbrados, a maneira como ele se desdobra em carinho para conosco, a generosidade com que nos cumula de graças, a facilidade com que nos perdoa e a ternura com que o faz, suas carícias e suas epifanias várias e incontáveis que nos cercam.

Deus, amando, entra no coração e faz entrar no Dele, sonda as profundezas do coração da criatura, conhece suas razões, seus motivos conscientes e inconscientes, suas fraquezas, suas intenções mais secretas e ama, somente ama, sem limitar o amor a impressões superficiais. Nós, ao contrário, começamos pela superfície, "amamos" o que nos é agradável e favorável. Se chegamos a um nível mais profundo, somos capazes de tolerar algumas falhas menores naqueles que nos são mais próximos, talvez cheguemos a tolerar algumas maiores, somos capazes de acolher algum pecador público que, em geral, a sociedade rejeita. Se, porém, chegarmos a uma profundidade ainda maior do amor seremos capazes de dar a vida por esses mesmos em quem descobrimos os piores defeitos, ultrapassaremos o nível da tolerância e chegaremos ao dom, à doação livre e total de nós mesmos a todos, de maneira a alcançar precisamente aqueles pontos mais frágeis que antes poderiam fazer-nos rejeitá-los.

A misericórdia rasga-nos o coração. Um coração misericordioso é sempre aberto, ferido como é de chaga incurável que o faz derramar continuamente seu sangue, num dom permanente que aprendeu de Cristo a fazer de si mesmo a todos, sem fazer distinção de pessoas. A misericórdia é característica do coração puro, necessário para ver a Deus, para reconhecê-lo, para ver com os olhos de Cristo. Um coração misericordioso não tem um olhar condicionado por opiniões próprias, condicionado à própria experiência, não faz juízos enviesados pelos próprios sentimentos e emoções. É próprio do falso misericordioso e pretensamente justo jugar o outro a partir dos próprios sentimentos, projetando no outro o que ele teria feito em seu lugar ao invés de acolhê-lo sem pretender imaginar suas razões.

A misericórdia rasga-nos o coração, faz-nos perder a vida em favor de outra vida, faz-nos olhar para nós mesmos sem pretender-nos melhores que os outros. O misericordioso já ofereceu a Deus seu coração e não quer tomá-lo de volta, deu-o a Deus para que Ele o use, para que seja uma sede para aquele Amor que, antes de tudo, o amou gratuitamente e continua a amá-lo. O misericordioso não nega a ninguém o que ele mesmo desmerecidamente recebeu: todo o amor de Deus.

domingo, 14 de junho de 2015

Cristo Total

Resplandece, Cristo Cabeça,
Transfigura-te, mostra teu
rosto velado em teus membros!
Eis que por toda a terra
teus membros, como semente
espalhados, unidos em Ti,
ainda te esperam e já
te possuem

Manifesta ao mundo a vida,
Cristo Total, distribui
teu fruto mais belo, vida
e comunhão, mostra que tu
não te ausentas à história
do homem, e o homem, perdido,
em ti se descobrirá, será
restaurado

Grita ao mundo, Cristo Total,
teu Evangelho, em toda parte
que alcançam teus membros,
lá onde estão os perdidos
que esperam ser alcançados,
ama para que tua cabeça seja
visível, sensível, presente
nos corações

Despe-te, Corpo de Cristo,
de todo temor, recorda-te
de tua Cabeça, Cristo Senhor,
Rei do Universo e do homem
por ti revelado a si mesmo,
eis teu dever, tua essência,
mistério insondável do Amor
que te faz

Ergue-te, Corpo de Cristo,
para que o mundo te veja
e ao teu Senhor reconheçam,
o Senhor da vinha que és,
e numerosos frutos darás, tu
ao mundo alimentas e nutres
de Cristo em teus membros,
tu, Cristo Total

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Vocação

Se outrora eu tivesse podido
contemplar tudo que agora vejo
certamente poria aqui todo desejo
e toda força de minha alma
Mas tu sempre te antecipas
e para que minha vontade e sentidos
não vissem menor o que me dás, tu
me deste tudo antes que eu o pudesse
desejar e o quero agora mais que tudo,
pois que tenho tudo aqui e nada mais
me falta e tampouco faltará.
Ainda vejo pouco, mas meu desejo
curto, absorvido, já não se perde
em egoísmos, o que me deste supera
tudo que poderia atrair-me, seria
pouco se por mim, pelo que visse,
se movesse meu desejo, mas não!
Deste-me mais, infinitamente mais,
e hoje, o que poderia mais querer?
Tenho o Senhor e uma vida inteira
aqui, promessa e realização, teu
coração será o meu e tuas as minhas
mãos, teus meus olhos, pés e voz,
serei tu e já nada será meu,
serei teu, então, totalmente,
como já sou, desejo ainda, e plena
comunhão contigo, meu Senhor,
meu desejo, minha vida, meu Amor.

terça-feira, 31 de março de 2015

Rei estranho

Sou súdito de um Rei
estranho, sem trono
para sentar-se, mas
erguido mais alto
que todos os tronos,
é ostentado no mundo
inteiro, sobre tudo
Rei, réu soberano

Seu trono, ostensório
de sangue e maldição,
Custódia de amor vero
e extremado, sangrento,
coroa de espinhos o
distingue de todos
os outros, Rei supremo,
humilhado, pequeno

Seu manto, a nudez,
carne que à divindade
reveste e esconde,
sangue que vela
igualmente a natureza
de barro e de pó,
a fraqueza que quis
fosse sua, totalmente

Sou súdito de um Rei
estranho, rendido e
silente, injustiçado,
que se fez maldição,
um Rei que entregue
ao inimigo, vencido
venceu, gáudio inaudito!

Vence o Rei sozinho,
guarda Ele o exército e
sem perdas, triunfa,
o general supremo
morre e vence a morte,
O Rei em seu trono
estranho perdoa e faz
do inimigo seu povo

Sua glória é a morte,
o desprezo, o homem
agora totalmente vivo,
a vida, mais uma vez
revestida da glória
imortal primitiva,
Páscoa, ainda pena,
e espera, Seu Reino.

quarta-feira, 25 de março de 2015

A humildade

A humildade desconhece
espelhos, não tem reflexo,
embora seja evidente
e não saiba esconder-se,
todos a veem sempre

É cega sempre que olha
para si mesma, mesmo
que não seja cega,
sabe-se pequena,
mas é grande, infinita

Todos a veem, ela não,
e é falsa se se reconhece,
vive fora de si e vive
apenas se é morta para si,
se invisível, é perfeita

Misteriosa epifania!
Verdade paradoxal!
reflexo da luz divina,
beleza imaterial!
Ser sem excessos

terça-feira, 17 de março de 2015

O dom da gratuidade

Tenho por certo que o amor é sempre incondicional. Não há face mais autêntica do amor do que aquela que revela cuidado sem esperar absolutamente nenhuma recompensa. Eis o que Deus me fazia pensar quando abracei um bêbado, homem acostumado à rejeição, perdido no meio da história que contava sobre o assassinato da filha e o torpor do álcool, embriaguez que julguei ser uma tentativa de fuga da dor da perda da filha. Acolhi-o, sem sentimentos, sem afeição, sem gostar do que fazia, fui movido por uma força que me fazia agir segundo a ordem que me deu o Senhor: ‘eu não tenho o direito de não servir’. Nesse contexto, era fácil duvidar da autenticidade daquela história, e parecia justificável recusar ajuda, mas o que o Senhor queria ensinar-nos, a todos que lá estávamos, prevaleceu sobre meus medos.

Providenciamos para ele o que pudemos, considerando verdadeira a história que nos contara e, enquanto ele nos falava e nos abria seu coração, um desejo não abandonava o pensamento: deixá-lo aos cuidados da Toca de Assis. Porém, tomamos outro caminho, e o levamos até a rodoviária para que embarcasse para Rubiataba, no estado de Goiás, cidade onde sua filha seria sepultada, mas encontramos o guichê da empresa de ônibus fechado. Realizou-se então aquele meu desejo primeiro, o levamos à casa da Toca de Assis e o entregamos a mãos mais apropriadas que as nossas para que cuidassem dele. Durante todo o tempo assaltava-me a dúvida a respeito da autenticidade do que aquele homem nos contara, e me atormentava ainda mais o pensamento o fato de ele ter-se identificado por três vezes com nomes diferentes.

Pouco tempo depois, já dentro do ônibus, a caminho de casa, o tumulto daquela “ocupação” cessou e a Palavra de Deus fez minha alma chorar com uma simples pergunta, que calou todo julgamento: ‘porque esperas recompensa?’ A recompensa que eu esperava era o “fruto de nossa caridade”. Vaidade. “Se o fizesse de minha iniciativa, mereceria recompensa. Se o faço independentemente de minha vontade, é uma missão que me foi imposta.” (1Cor 9, 17) Se espero recompensa coloco minha confiança no meu ato, não na graça de Deus. Devo desejar e esperar que ele ame a Deus, mas não posso desejar ver isso, ainda que o veja, isto já seria minha recompensa. Ai daqueles que já aqui tem sua recompensa! (Mt 6, 2)

Eu precisava deparar-me com alguém que não “merecia” amor para aprender tudo isso. Palavras que descrevem este amor estamos fartos de ouvir, mas somos tardos em colocá-las em prática. Depois de tudo eu pensava: Graças a Deus ele pôde ver o amor cristão. Eis a vitória de Deus, não fui eu que o acolhi, mas fiz, de algum modo, as vezes de Cristo para aquele homem. Não me orgulho disso, porque meus sentimentos traíam o que aquele homem deveria experimentar. Alegro-me, porém, porque Deus sabe usar de nossa incapacidade, e oculta aos Seus amados mais pobres a miséria de Seus servos, para que apareça somente Seu infinito Amor.

terça-feira, 10 de março de 2015

Como vosso Pai

Sede como vosso Pai do Céu (cf. Mt 5, 48).

Assim diz o Senhor: "Será que eu tenho prazer na morte do ímpio? - Oráculo do Senhor. Não desejo, antes, que mude de conduta e viva?" (Ez 18, 23)

Deixai, pois, vossos juízos e empenhai-vos em conduzir os que erram à verdade e à justiça. Os que erram são numerosos e certamente estais entre eles. "Não é verdade que fazeis distinção entre vós, e que sois juízes de pensamentos iníquos?" (Tg 2, 4). "Onde está o motivo de se gloriar? Foi eliminado. Por qual lei? Pela das obras? Não, mas pela lei da fé" (Rm 3,27).

Olhai à vossa volta e vede se há um dentre vós completamente livre de culpas. Não julgueis, ao invés, sede como vosso Pai do Céu. Desejai que os ímpios - dentre os quais sois contados se em vós prevalece o juízo em vez da misericórdia - retornem à segurança do redil de Cristo. Trabalhai com todo empenho para a realização do Reino de Deus, cuja vinda pedis tantas vezes sem, no entanto, trabalhardes para que se realize. Realizai-o vós!

Se não vos julgais capazes, olhai e vede aqueles que vos precederam em semelhante ofício. Uma legião de mártires caminha à vossa frente enquanto vos deteis em murmúrios e resoluções vacilantes. Hesitais, dando provas de que sois mais fracos que os filhos das trevas, a quem julgais pensando que sois melhores do que eles. Levantai-vos, tende coragem e marchai todos vós! À vossa frente marcha vosso comandante, o Senhor, que combate por vós com braço forte.

"Desse modo, cercados como estamos de uma tal nuvem de testemunhas, desvencilhemo-nos das cadeias do pecado. Corramos com perseverança ao combate proposto, com o olhar fixo no autor e consumador de nossa fé, Jesus." (Hb 12,1)

terça-feira, 3 de março de 2015

Sede perfeitos

"Portanto, sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito" (Mt 5, 48). Talvez pareça exigência alta demais, mas é justo que seja exigido do cristão o que é próprio de seu mestre. Mas em quê consiste tal exigência, o que significa ser perfeito? É evidente que não é tornar-se indefectível, nossa natureza é essencialmente incompleta, imperfeita, em vias de aperfeiçoamento. Só Deus é perfeito. É bem outra, portanto, a perfeição que de nós é exigida. Dá-nos uma pista a conjunção que antecede o imperativo: portanto. A perfeição exigida de nós é o amor incondicional: Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Portanto, amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos perseguem. Deste modo sereis os filhos de vosso Pai do céu. (Mt 5, 46a. 47a. 44b-45a).

Parece-te ainda alta a exigência? "Lembra-te de que tu és meu servo; eu te criei, és meu servo, Israel, não me decepciones. Desmanchei como uma nuvem teus pecados, como a névoa desfiz tuas culpas; volta para mim, porque te resgatei!" (Is 44, 21-22). Ora, se aos que se dizem discípulos de Cristo se exigisse menos do que se reconhece em seu Mestre, seriam eles autênticos? "Nós vos exortamos a não receberdes em vão a graça de Deus, pois ele diz: 'No momento favorável, eu te ouvi e no dia da salvação, eu te socorri'. É agora o momento favorável, é agora o dia da salvação. Não damos a ninguém nenhum motivo de escândalo, para que o nosso ministério não seja desacreditado. Mas em tudo nos recomendamos como ministros de Deus." (2Cor 6, 1-4)

Fosse a vida do cristão em alguma medida mais leve que a vida de Cristo, isso seria certamente um escândalo. E já o é, pois que muitos parecem empenhar-se em fazer o Evangelho desacreditado. É graça de Deus a perfeição, por isso ela pode e deve ser exigida de todo batizado. E não é exigência alta demais. Lembra-te, desmanchei como uma nuvem teus pecados, diz o Senhor. Não recebamos em vão a graça de Deus! Deus deu-nos a capacidade, o que nos falta ainda?

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

O primado da humildade

Donde vem que só aos humildes Deus queira manifestar-se e revelar Sua vontade? Donde vem que somente àqueles que tem o coração puro seja concedido ver a Deus?

A humildade é virtude deveras elevada, e deveras baixa, pequena, quase imperceptível. É grande, gloriosa e seus resplendores enchem também de luz os que a testemunham. É, no entanto, simples, pequena, seus portadores, por assim dizer, ignoram possuí-la, vivem-na como dom que fazem de si mesmos, reconhecem-se pequenos e por isso não se dizem humildes. O humilde sente-se sempre grande, embora seja pequeno, o menor de todos. O humilde sabe que é apenas pó e não quer para si uma glória que não possui. A este, somente a este, Deus quer dar-se a conhecer.

A quem pertencem a glória, a realeza, a força e o poder? A Cristo, Verbo onipotente por quem todas as coisas foram feitas, o único Senhor. Mas em quê consiste essa glória possuída só por Ele? Consiste na soberania absoluta sobre todo ser, nele toda essência subsiste e fora dele nada existiria. Essa glória é manifesta em todo criado e em toda criatura ela é visível, sensível e evidente. Esse Deus, num ato de absoluta liberdade, faz o homem "do pó da terra", e fá-lo à imagem e semelhança de si mesmo e senhor de todas as outras criaturas, como se fora o homem um deus menor. Quis, porém, o homem roubar a glória de Deus e caiu do alto de seu orgulho. Incapaz de retornar às alturas de onde caíra, o homem que viera do pó tende novamente ao pó, à morte, fim natural aos ausentes de Deus.

Mas Deus desce e vai ao encontro do homem humilde, deste homem que de novo fez-se barro e pó da terra mas que desistiu de querer elevar-se e aceitou sua nova condição. Para este homem, humilhado, Deus manifesta-se glorioso, Senhor de tudo e capaz de outra vez fazer do pó barro e dar-lhe um novo sopro de vida. Mas aos que querem erguer-se sozinhos Deus deixa que vivam sós, embora quisesse que não fosse assim. Para o homem que desiste de ser senhor de si mesmo, Deus é sempre o único glorioso. No humilde Deus é manifesto, porquanto não quer ser mais do que é. "És pó e ao pó hás de tornar" (cf. Gn 3, 19). De Deus vieste e a Ele hás de retornar.