sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Esta noite

Como é costume na celebração da Páscoa judaica, hoje também quero fazer a pergunta: "Por que esta noite é diferente das outras noites?"

Longe de querer comparar a troca do calendário à celebração da Páscoa, quero apenas propor uma simples reflexão. De que nos serve a celebração deste dia, do novo ano que chega deixando para trás alegrias que recordamos com saudade e as tristezas que queremos esquecer? Confesso que nunca encontrei uma justificativa plausível para toda a alegria que parece ser própria do dia 31 de Dezembro. O único sentido que encontro para essa festa está na origem do nosso calendário, que refere o ano zero ao nascimento de Cristo. Mesmo que a data não seja tão precisa quanto a maioria de nós acredita, pensar que há 2011 anos o Salvador nos veio, como celebramos há poucos dias atrás, deveria levar-nos a um comprometimento maior com a fé que professamos, um impulso para trabalharmos a nossa salvação com temor e tremor (cf. Fil 2, 12). De fato, "já é hora de despertardes do sono. Agora, a salvação está mais perto de nós do que quando abraçamos a fé. A noite está quase passando, o dia vem chegando: abandonemos as obras das trevas e vistamos as armas da luz." (Rm 13, 11-12)

"Por que esta noite é diferente das outras noites?" Porque a mudança de vida que esta data nos sugere nos aponta para a esperança que nos tem sustentado até aqui: importa vivermos bem para alcançarmos a felicidade que não tem fim.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Assim espero

Espera meu coração pelo Senhor. E o que faz meu coração? O que faria se Ele chegasse hoje. Mas meu coração fraco e cansado às vezes dorme e, quando acorda, reza pra que Ele ainda não tenha chegado. Mas como quisera já fosse o tempo, o dia mais feliz de minha vida, nosso encontro! Mesmo que Ele me encontre dormindo, que Ele me encontre! Não tenho medo se o cansaço me vem do trabalho que faço, se tudo que faço é gastar minha vida preparando Sua vinda, como voz que grita no deserto, sem água que me alivie a sede, com poucas chuvas, dias quentes, noites frias e sem ter onde reclinar a cabeça. De mim mesmo tenho pouco, e não sei o que poderia oferecer ao Rei em reconhecimento de sua majestade e pela honra de Sua visita. O que tenho e que darei é o que hoje dou, meu tempo, meus planos, meus sonhos que há muito morreram, para que vivessem os Dele em mim. E se meus sonhos querem voltar, logo me inquieto e morro de novo, para depois ressuscitar feliz com os sonhos de Deus outra vez em meu coração. Assim rezo, esperando que logo chegue o Dia do Senhor!

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Esperando

Alegra-me o coração saber que estás chegando. Quanta alegria envolve os dias que antecedem tua chegada! A preparação, a espera, as lembranças do ano que passou, as novidades que contigo quero compartilhar. Há tanto para dizer, e tanto ainda por viver! Quisera já fosse hoje o dia de nosso próximo encontro, mas ainda devo esperar.
Por toda parte já se vê as expressões de um mundo que espera e, ansioso, já celebra tua chegada. Mas fico triste quando vejo que tantos te trocaram por outros, e não te esperam mais, enfeitam as ruas, as casas para festejarem e esbanjarem os próprios ganhos. Triste vida que com tão pouco se contenta! Mas a felicidade que sinto é maior, e quisera poder cantar todo dia anunciando que estás para chegar, que nosso encontro contigo já não tardará.
Às vezes fico pensando como terá sido naquele tempo, como te esperava aquele povo que há tanto tempo ouvia promessas sem saber quando se cumpririam. Penso sobretudo em como tua mãe te esperou, com quanta alegria deve ter ela sorrido naquele último mês, quando finalmente ela veria teu rosto de criança, rosto de Deus. Tamanha simplicidade jamais se veria em outro lugar. Quem poderia imaginar Deus se fazendo criança para nos visitar? E assim se fez, e naquele choro, naquele riso de bebê ouviu-se a voz de Deus.
Felicidade não tem outro nome senão o Teu e não pode ser encontrada em outro lugar senão no presépio de Belém, no coração da Virgem Mãe de Deus, onde o Verbo do Pai primeiro habitou.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Lamentos

De que nos serve o lamento, o choro, da dor o grito incontido que ecoa dentro e fora de nós? De que nos serve olhar o passado com olhos ingratos, inconformados, e pensar possibilidades que já não podemos tocar?

É vão o esforço que faço para entender as razões dos fatos que me fizeram quem sou, inútil tentar descobrir motivos para o males que sofri, para as fraquezas que hoje me ferem e não posso vencer. Mas de que me serve o lamento, e não me conformar com a forma que tenho, moldado como fui por tantas histórias que precederam a minha, que passaram por mim, de amigos, parentes passados, presentes?

Uma escolha tenho só, uma opção, um desejo que não posso contrariar. Felicidade bate à minha porta, e não posso fazê-la esperar, é visita que pode não voltar. Mas tenho medo de recebê-la em minha casa, e deixar que se assente no meio de tão grande desordem.

Escolhi abrir a porta, e descobri que a felicidade é amiga das dores e não se recusa a viver com elas. Hoje já não me lamento, deixo viver a felicidade em minha casa e deixo que aos poucos ela ponha em ordem meu coração.

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Perdas

A vida parece perder-se por entre os dedos, como areia que tomamos nas mãos e levamos a outro lugar. A areia cai, esvai-se a vida, a pouco e pouco esvaziando nossas mãos e nosso coração. Perde-se a vida enquanto perde-se tempo, enquanto não nos ocupamos em não deixar frestas entre nossos dedos e proteger a vida do vento, do tropeço, do desequilíbrio. Esvai-se a vida, marcando os lugares onde vivemos, onde morremos, morrendo aos poucos e deixando túmulos em tantos lugares que só nos viram de passagem. Enquanto a areia cai não a podemos tomar de volta, querer parar e deixar que caia num só lugar para recolhê-la de novo, porque o vento sempre sopra, e sempre soprará, a vida para longe de nós.

O que perdemos e o que ainda podemos lucrar? A perda, não a podemos remediar, e não podemos levar nada além da areia em nossas mãos, nada além do tempo que temos e não temos, que já passou e passará. Quisera poder guardar um pouco de mim, um pouco deste pó que possa servir de conselho a quem vier depois de mim. Quero deixar a areia cair bem perto do chão, deixar marcas que possam seguir quem passar por aqui, deixá-la cair em outras mãos, perder minha vida na vida de outros, para que vivam com o pouco de mim que morre a cada dia.

Quero deixar perder-se o tempo, quero deixar soprar o vento, partir a vida, morrer. Quero ver minhas mãos vazias, no fim deste dia, e ver que o tempo, a areia, os medos, anseios e sonhos, planos, desejos, infortúnios e alegrias, tudo isso perdeu-se pra que eu pudesse gozar da companhia de meu Deus.

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Coração pobre

Dá-me um coração pobre
Quero ver-me livre de mim
Sair deste meu cativeiro
Que eu mesmo construí
 
Olho em volta e nada vejo
Que me desperte a esperança
De uma outra vez ver a luz
Antes que passe esta vida
 
Mas ainda espero e creio
Que teu amor me pode salvar
Deste mal que eu escolhi
Para ocupar meu coração
 
Porém já não me atraem
As riquezas desta vida
Que já tenho bem sentida
A dor que me causaram
 
Neguei-te tantas vezes
Que contá-las já não posso
Mas creio que me virás
Salvar de tanta pena

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Gritos pela vida

Ouvimos gritos vindos de todos os lados, clamores quase desesperados por uma justiça que mais parece vingança do que uma pretensa defesa de quem julga não ter outra saída senão a morte [dos outros]. Jornalistas, líderes religosos, gente sem instrução, todos querem encontrar um lugar de evidência no meio das discussões e gritar mais alto que todos os outros. O aborto é o tema da moda, e é ele que suscita os gritos de socorro, de mães e do povo que se levanta pelos filhos delas. Penso que ambos devem ser ouvidos.

Não é mera demagogia querer defender os nascituros com protestos, leis e projetos em defesa da vida, ainda que alguns chamem isso de aberração. Aberração é querer hierarquizar a vida, e dar mais importância à vida das mães que à vida de seus "indesejados" filhos. Não condeno os que querem defendê-las da morte, mas condeno o pensamento que se alastra pelas mentes malsãs, que consideram a vida dos filhos menos importantes que a vida de suas mães, e os julgam intrusos de seus corpos [invioláveis].

Poucos procuram a razão do problema. As mulheres que abortam precisam de ajuda? Sim. Podemos ignorar o fato de que muitas morrem em procedimentos abortivos e negar-lhes auxílio? Não. Não podemos tampouco ignorar a morte de crianças que ainda não tem voz e calar a voz dos que pedem socorro por elas. Quando o Papa Bento XVI levantou a voz, em nome de toda a Igreja, contra a promiscuidade e o uso livre de contraceptivos muitos lhe atiraram pedras, poucos o louvaram e quase todos julgaram ser apenas mais uma manifestação do "moralismo" católico, retrógrado e superficial, como dizem. Ignoram que está aí a grande causa dessa capacidade patológica de entender tudo pela metade.

Querem o sexo livre, mas não querem filhos. Inventaram, então, os anti-concepcionais e preservativos. Depois, como se não bastasse, elegeram agora o aborto como última "solução" para a irresponsabilidade que querem esconder. Doenças sexualmente transmissíveis são apenas a desculpa bonita que encontraram para não educar o povo. O discurso falacioso dos abortistas denuncia isso. Ninguém está interessado em evitar doenças, mas em evitar filhos, e a prevenção da doença vem a reboque. Chamam a Igreja de inquisitora por reprovar os que assim procedem, enquanto são eles os que condenam inocentes. O que não vêem é que a Igreja não condena ninguém à morte, enquanto eles querem matar quem sequer teve a chance de conhecer a vida.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Superficialidades

A necessidade [artificial] de exibir o próprio corpo como uma peça de mostruário esconde uma necessidade inconfessada de atenção, uma carência afetiva que muito custa ser admitida e que no escondimento degenerou numa forma de prostituição socialmente aceitável. Perdoem-me se pareço agressivo, mas não me parece uma atitude própria de quem tem amor por si mesmo vestir-se com tal despudor que pareça natural "mostrar o que é bonito" como se fosse propriedade de todos, como o é uma construção tombada pelo patrimônio nacional. Será que a dignidade humana pode ser reduzida à categoria de um objeto comercial, e às vezes de "amostra grátis", pelo preço da satisfação que se tem num elogio superficial ou num prazer momentâneo num quarto de motel ou em lugares ainda menos dignos?

Hoje em dia fala-se de um tal "ficar", encontros que nem merecem ser chamados de relacionamentos; muitos louvam esse comportamento e o tentam justificar explicando-o como uma "fase de preparação" para se escolher alguém com quem se queira construir um relacionamento mais duradouro. Pergunto se não lhes parece irracional esse comportamento. Onde se esconde a capacidade de raciocínio de quem considera isso um comportamento digno, se toda a "sapiência" da nossa espécie permanece em segundo plano e o prazer toma o lugar da liberdade e da consciência dos próprios atos e escolhas?

Da aprovação desse tipo de comportamento e da assunção de tudo isso como elemento da cultura dominante surgem diversas "idéias brilhantes" que despontam como soluções para os problemas do mundo inteiro. Quero falar especialmente do aborto, tema tão comentado nesses tempos de grande movimentação política, e aproveito para reiterar o posicionamento do Bispo de Guarulhos (SP), Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, e digo a todos os Cristãos para que não vendam seu voto por um bocado de promessas e não deem seu apoio e voto a candidatos abortistas ou que dizem tratar o assunto como "questão de saúde pública". A esses tantos abortistas, declarados ou não, nunca importam os direitos da criança, apenas o "bem estar", as "necessidades" e vontades da mãe. É um absurdo, já que se diz que todo ser humano tem direitos iguais; no caso do aborto, porém, os "direitos" da mãe são priorizados em razão apenas do egoísmo dela. A quem cabe o direito de arbitrar sobre a vida? Pergunto o que fariam os abortistas se, no tempo em que ainda estavam sendo gestados, estivessem sob a ameaça de serem abortados e pudessem sabê-lo.

São esses os que condenam a Igreja Católica e a chamam retrógrada quando ela manifesta, pela voz de seus pastores, sua doutrina moral a respeito de comportamentos dessa natureza, e chama de pecado tudo isso. Por isso a Igreja não se pode calar, nem mesmo pela boca de seus filhos menores, e a Voz de Cristo deve ser ouvida da boca de todos os filhos da Igreja, que unida ao próprio Cristo, Sua Cabeça, deseja somente o bem de seus filhos, pródigos ou não.

Devo dizer que permanecer passivo diante de questões como esta tem o mesmo peso moral de militar a seu favor. Não queira ser contado entre os assassinos ou entre seus cúmplices, mesmo que você fique entre os assassinados.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Pequena partilha

Era um dia diferente aquele 10 de fevereiro. Eram mais ou menos 11h25 da manhã quando ela chegou, chorando, e olhou nos meus olhos suplicando ajuda. Nunca vi um olhar tão triste e tão profundo, que me fitava de um jeito que não me deixava desviar o olhar. Mas, desde quando ela ainda se aproximava, chorando, meu coração já chorava com ela, como se já tivesse tocado a razão de suas lágrimas, e eu rezava.

Ela chegou assim, e eu, sem palavras, só soube ouvir. Falei pouco, o necessário, que tão somente introduziu o essencial daquele encontro inesperado e cheio de esperança. Quem poderia prever o que nasceria naquele dia? Nada havia que se pudesse chamar de esperança, nada que os olhos pudessem ver. Trocamos poucas palavras, ela me deu mais de si do que eu lha dei de mim naquela hora; dei-lhe apenas um terço, sem grandes pretenções, sem imaginar o que viria depois dali. Uma amizade que nasceu num dia fatídico, estranho, imprevisível. A alegria foi aos poucos penetrando aquele coração. E a vida renasceu, e já naqueles primeiros dias já a chamava, dentro de mim, de minha filha. Grande responsabilidade que me revigorava, que me enchia de vida também, e que me atraía para aquela alma que me fez encontrar um Cristo diferente, mais próximo, encarnado, em mim e nela.

Hoje não consigo explicar o que acontece, a intimidade que cresce sem tentativas de fugas, sem máscaras, com uma pureza que às vezes me surpreende. Como ser pai, irmão e amigo de alguém, e um pouco de Deus também, sendo homem, e imagem de Cristo, humano e um pouco divino? Eis o Cristo, que vive em mim sem que eu O veja, e que me encontra no meu próximo mais próximo que me chama de melhor amigo, ou de anjo, mensageiro.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Nasce Maria

Nasce Maria, a mais feliz mulher
Aquela menina que um dia poderia
Exclamar com sua excelsa humildade

Que todos a chamariam de bendita
Pela dita que de Deus receberia
Bendita pelas dores que suportaria

Canta Sião a feliz epifania
Da nova mãe de todos os viventes
Das glórias de Maria, sua filha

E canta Maria com puríssima alegria
Quando chora abrindo os olhos
No dia em que primeiro viu a luz

A aurora feliz hoje nasceu
E já se vê o horizonte novo
Onde nascerá o eterno Sol

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Nossos passos

Por onde vão nossos passos, perdidos, buscando espaços escassos em uma vida de muitos fracassos e laços que prendem nossos passos? Sopra o vento sem que saibamos em que rumo vamos, e seguimos sem direção, levados por sopros de tantas vozes que nos ditam preceitos, conceitos estranhos à vida que escapa às nossas mãos. Distrações, corações que se perdem em prazeres tão curtos e fazem tão curtas as vidas que pensam que amam assim, que gostam da vida vazia das cadeias que não querem ver.

Por que não se levantam os profetas enviados por Deus para tantos corações? Onde se perdem nossos olhares, desejos tão vagos dos pesares de planos frustrados de um passado que sobreviveu? Lá onde a vida não brotou, onde da morte ninguém ressuscitou, onde Deus ainda não chegou é aonde devem ir nossos passos e corações. Lá onde vidas se perdem perderemos as nossas, monte que será nosso calvário e tabor.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Vivo assim

Vivo o contínuo desafio de transformar a morte em vida, de fazer voluntária minha morte e voluntária também minha ressurreição. E não penso que seja um desejo demasiado pretensioso querer viver com tal liberdade que viver ou morrer seja escolha minha, mesmo que a vida que eu escolher esteja para além da morte escolhida também por mim. Na verdade, creio que seja essa a escolha mais natural para quem deseja ser livre de fato. Escolho, portanto, a morte.

Escolho a morte para poder viver, para deixar desde já o que não posso guardar por muito tempo, para não criar vínculos com o que não permanecerá. Nada levarei daqui quando morrer, e por isso escolhi ser pobre. Minha riqueza é bem outra, diferente de tudo que vejo por aqui. Escolho a morte, escolho deixar para trás minhas vontades, o desejo de nunca ser contrariado, e abraço a docilidade diante de tudo que me acontecer, não quero carregar o peso de frustrações inevitáveis. Aliás, não quero sofrer frustrações; quando o que eu quiser não acontecer, quererei o que vier no lugar, não me importo, assim sou mais feliz.

Diante de mim está a morte e está a vida. Mas só uma das escolhas me garante também a outra, só depende do que seja vida e do que seja morte para mim. Vivo assim, atrás dessas aparentes contradições, nesta morte que é metáfora da vida, convivendo com a vida que é metáfora da morte.

sábado, 7 de agosto de 2010

Amigos de Deus


Hoje resolvi escrever de um jeito diferente. Ultimamente meus textos tem tido um tom mais místico, metafórico, irônico. Hoje quero falar com mais liberdade, com mais clareza, e até, porque não, mais poético, um pouco mais livre das rédeas da gramática tradicional e das correntes do que chamam norma culta da língua.
A amizade sempre me foi algo muito querido, em grande parte por ter sido uma das vias por onde Jesus me encontrou na intimidade, sem minhas defesas, e me alcançou antes que tivesse tempo de fugir. Parece estranho, mas nas simples e, por vezes, despretensiosas palavras de um amigo Jesus fala ao meu coração e me ensina amá-Lo sobre todas as coisas. A ajuda sempre oportuna, o ouvido solícito, a mão estendida, o carinho, o cuidado, tudo isso que encontro num amigo me fala de Deus e me faz lembrar-me de que Jesus também quer ser assim comigo, quando disse que eu era seu amigo mesmo antes de eu o conhecer de verdade (e mesmo hoje não sei bem se o conheço).
Amigos são assim, imagem de Deus, não só pela ordem natural, por serem humanos, mas pela experiência que nos permitem fazer da liberdade que Jesus quer ter conosco e que Ele quer que tenhamos com Ele. E cada reencontro, especialmente depois de conviver com a saudade por algum tempo, torna-se ainda mais feliz e consolador, é como antecipar um pouco do céu, vendo morrer a saudade e perdendo de vista os desencontros passados e futuros. E, mesmo que não seja um objetivo cristão encontrar segurança nessas consolações, elas nos animam e nos revigoram para irmos até o final. Por isso digo que encontrar-se com um amigo é como encontrar-se com Deus, que de algum modo se esconde e se revela num rosto, num olhar, num sorriso, numa voz, num abraço que nos são caros e que sabem encontrar sempre o melhor de nós.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pecados

Porque há tantos pecados?
Perguntam-se tantos
E não encontram conforto
E respostas tampouco

Parece ser tudo pecado
Aos olhos de um Deus
Que a tudo criou
E que dizem ser sábio

Parece que Deus escolheu
Para nos proibir de comer
Dos frutos o mais saboroso
Que Ele mesmo criou

E fez-nos todos culpados
De um crime passado
Cometido por outro
Que não somos nós

Mas não entendemos
Que o que nos condena
Não é aquele pecado
Mas sim sua reprodução

Nascemos todos cativos
Do mesmo perigo
De tender para longe
De onde está Deus

Tudo que é mal
Na verdade não passa
De escolhas erradas
Diferentes de Deus

Por isso o pecado não é
Determinação ou conveniência
De um Deus que deseja
Fazer-nos a Ele obedecer

Pecado é tudo que fere
A integridade do homem
E nos faz viver longe daquele
Que nos fez nascer e viver

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Artista

Não sou um artista como tantos outros, apenas cumpro um mandato que sinto dentro de mim, devo fazer minha arte sem guardá-la para mim, nem mesmo os bens que dela me vêm. Vivo assim, sem remorsos, enquanto as riquezas que poderia guardar se dividem por outras mãos e saciam outros corações; o meu fica aqui, sangrando, sem remorsos. Pesares, não os tenho muitos, meu ofício não me permite frustrações. O que faço me satisfaz e me alivia quando escapa ao silêncio e se torna concreto.

Não sou um artista como tantos outros, não vivo mendigando louvores, nem me prostituo vendendo minha arte por uns poucos elogios e fotos em capas de revista. Prefiro o anonimato. Pudesse eu esconder-me e distribuir ao mundo os frutos produzidos no segredo, certamente o faria, mas não posso. Há quem precise dos frutos produzidos por esta árvore que sou eu, e não posso impedi-los de encontrar-me. Por isso continuo aqui, exposto e vulnerável, frágil e trêmulo, enquanto são atiradas contra mim as flechas do orgulho, da vaidade e dos elogios dos homens.

Não sou um artista como tantos outros, sou de Deus.

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Voz passiva

Prefiro andar distraído, dentro de mim, recolhido, subtraído da vida, do mundo, do sagrado convívio com todos que quero se esqueçam de mim; esquecer-me do mundo é o meu paraíso. De que me serve escutar a vida, ferir-me com o que não quero ouvir, e ouvir o imprevisto, o importuno mendigo que suplica ajuda, a vida que grita pedindo que eu saia de dentro de mim e volte a viver. Mas prefiro andar distraído, andando perdido nos mesmos caminhos de todos os dias, conservando a tediosa rotina que não quero quebrar ouvindo o que passa perto de mim.

De todos que passam por mim eu pouco conheço, tenho medo de ouvi-los falando comigo, pedindo socorro, chorando seus medos, e prefiro deixar meu egoísmo velado, e não ter que esquivar-me do que pede que eu saia de dentro de mim. Prefiro viver escondido, cerrando os ouvidos, e ouço só o que quero, o que não incomoda e tampouco me assusta, e nem pede que eu saia de dentro de mim. A pouco e pouco aqui dentro cresce o meu egoísmo que não quero mostrar, e a pouco e pouco morro pedindo socorro, temendo que ouçam meus gritos os que temo que falem comigo, e morro sozinho.

Prefiro andar distraído, dentro de mim, recolhido, e vivo escondido, passivo.

Vivo?

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Sacrifícios

Que sacrifícios nós somos capazes de fazer por Deus? Quanto vale para nós a Vida Eterna? A essas perguntas nem sempre somos capazes de responder e, quando somos, muitas vezes trazemos apenas mais uma frase que decoramos e que gostamos de repetir para ostentar uma falsa virtude.

Respondamos sinceramente: que sacrifícios nós somos capazes de fazer por Deus? Muitas vezes suportamos sofrimentos maiores para podermos ir a um "lugar que nos agrada" do que para irmos à Santa Missa ou ao grupo de oração. E os suportamos voluntariamente, porque ficar em casa nos pouparia de todo aquele sofrimento. Escolhemos sofrer para nos divertir, mas não para rezar.

Um exemplo simples nos ajudará a entender. 'Quando estou com dor de cabeça não posso ir à Missa, mas a uma festa sim. Afinal, quando estou doente não consigo me concentrar e não vou participar dignamente do Santo Sacrifício. Em uma festa, em quê pode atrapalhar uma simples dor de cabeça?' É um exemplo banal, mas creio que todos entendem o que quero dizer.

Além disso, quando falo de escolhas feitas em detrimento do mal de que padecemos eu me refiro também ao necessário cuidado que devemos ter com nosso corpo. Nenhuma situação legitima a negligência ou a displicência nesse cuidado, porque "o sábado foi feito para o homem e não o homem para o sábado" (Mc 2, 27), as festas foram feitas para o homem e não o homem para as festas. Examinemos, pois, nossa consciência. Quais são os nossos verdadeiros valores? Onde esperamos encontrar a felicidade?

"Ou não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo, que habita em vós, o qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis?" (1Cor 6, 19)

terça-feira, 8 de junho de 2010

Hipocrisia


O que já fizemos de mal quando não éramos vigiados? O que não fizemos de mal porque éramos vigiados? Onde está a virtude que deveria motivar nossos atos, onde a pureza de consicência que deveria orientar nossa conduta? Às vezes me pergunto: será que realmente amamos a Deus ou o discurso cristão serve apenas para anestesiar a nossa consciência? Vivemos sempre prontos a pensar nos erros que queremos cometer, planejá-los, e ainda colocamos nos nossos planos a confissão sacramental ao final de tudo. Quanta hipocrisia! Valores que deveriam ser estimados e praticados por nós, cristãos, são postos de lado como se fossem apenas preceitos morais, disciplinares, regras que aprisionam e que servem apenas para conservar aparências, ostentar a opulência de nosso coração quando estamos na companhia de outros mais virtuosos que nós. Mas, ai, que quando nos associamos a outros tão hipócritas quanto nós, ou até mais que nós, encontramos a ruína completa! O próprio santo Agostinho reconhecia que certos males ele não teria praticado sozinho:
"Meu Deus, eis diante de ti a lembrança viva de minha alma. Sozinho, eu não cometeria aquele furto, no qual não me comprazia na coisa que eu roubava, mas no ato de roubar; sozinho, não me teria atraído a idéia de roubar nem sequer teria roubado." (Confissões II, 17)
O que é que buscamos, então, apegando-nos ao mal e aos maus? Perto deles nos envergonhamos de professar a nossa fé e nos deixamos levar por suas perversas sugestões. Poderíamos, no entanto, deixá-los, mas assim nos esquivaríamos da responsabilidade alertá-los a respeito do mal que lhes causa à alma o mal que praticam. Deveríamos, portanto, ser cristãos a todo tempo, para que a condenação dos que não exortamos não nos condene também — o nosso testemunho será a exortação oportuna.
É um contrassenso sem tamanho "cristãos" louvarem, às vezes, virtudes de outros cristãos, mas não se empenharem em imitá-las. Será que vale a pena ser hipócrita? Tenho para mim que é mais fácil ser autêntico, seja para o mal ou para o bem.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Vivei transfigurados

Amados filhinhos, não vos esqueçais de mim. Peço-vos que sejais santos, mas viveis ainda presos aos mesmos vícios que tantas vezes me confessais, dos quais vos dizeis arrependidos. Por isso, não vos esqueçais de mim. Não vos condeno por cairdes, por serdes frágeis e sempre propensos a pecar. Se fordes condenados, sereis vós mesmos que vos condenareis, não Eu. Por isso, não vos esqueçais de mim. Estou sempre perto de vós, e em todas as vossas tribulações Sou Eu o consolo e refrigério de que necessitais.

Tantas vezes vos queixais dizendo que estou distante de vós. Dizei-me, quando foi que estive longe, quando foi que me esqueci de vós, filhinhos meus? Antes, não fostes vós que me esquecestes? Não fostes vós que colocastes vossas vontades acima da minha, enquanto pedíeis com ansia excessiva que Eu as realizasse todas? Não fui eu que me afastei de Vós, mas fostes vós que quisestes ser superiores a mim, e assim me esquecestes, esquecestes quem Sou, vós vos fizestes deuses de vós mesmos e de mim quisestes fazer vosso escravo.

Uma outra vez vos peço, filhinhos, não vos esqueçais de mim. Vivei transfigurados, vivei na minha companhia! Não é muito o que vos peço, apenas quero que sejais felizes, e vós o sereis se viverdes como Eu vos ensino, como eu vos mostrei com minha própria vida. Não é demasiado difícil o que vos peço, não é pesado o fardo que vos entrego, não é difícil o caminho que vos aponto. Apenas peço que fiqueis comigo, que vos contenteis com minha companhia, e nada mais. Quando isto sinceramente desejares, "o Espírito Santo, que o Pai enviará em meu nome, ensinar-vos-á todas as coisas e vos recordará tudo o que vos tenho dito". (Jo 14, 26) Assim sereis transfigurados, e a imagem do pecado se apagará em vós e sereis, então, imagem e semelhança minha, filhos de Deus íntegros no meio de uma sociedade depravada e maliciosa, onde brilhareis como luzeiros no mundo, a ostentar a palavra da vida. (cf. Fl 2, 15-16a)

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Banalidade

Tudo o que se diz sobre Deus
Não poderá ser sempre igual
Ainda que pareça que se repitam
As mesmas palavras e a entonação

Pois nunca há mera repetição
Se sobre Deus se ousa falar
Por que será sempre novo
Tudo que Dele se diz de novo

Mas para muitos é causa de tédio
O que de Deus se diz, nada mais
Sem qualquer novidade aparente
Ou qualquer sentido subjacente

Mas será verdade o que dizem
Os ouvidos que só ouvem igual
Igual em todas as vezes que ouvem
O discurso a que chamam banal?

Na verdade ao novo não ouvem
Por que só ao antigo querem ouvir
Não querem render-se ao saber
Que se recusam a reconhecer

Assim muitos desses se vestem
De uma soberba humildade
E se gabam de já conhecerem
O que já não querem ouvir

Mas não lhes parece absurdo
Que apreciem tantos discursos
Que são sempre também repetidos
A todo tempo à mesma cadência

Falam sempre do mesmo jeito
E só contra Deus sabem falar
Nesse, porém, náo acham o tédio
Sem queixas aplaudem as repetições

E de todos os lados ouvimos
Discursos que dizem todos os dias
Que dizem sempre as mesmas palavras
Ditas por tantos em tantos lugares

Mas do mundo a palavra é efêmera
E logo morre e ao vento se vai
Sempre se veste de novos disfarces
Pra seu fim parecer mais distante

A verdade é que não se pode calar
A voz que não se cansa de repetir
A sempiterna Palavra de Deus
Que sendo eterna não pode mudar

Pergunto-lhes onde está a banalidade
E qual discurso é de fato vazio.
Saibam que vazia é toda palavra
Que só vive de queixas e acusações

Se os hipócritas não puderam matar
A fé de tantos que preferem ouvir
A Palavra de Deus ao que a condena
O que não quer crer tampouco o fará

Se a Palavra de Deus se repete
É preciso que se queira entender
E um sincero desejo de compreender
A novidade oculta no que já foi dito

O que de Deus se diz não é repetido
Mesmo se dito nas mesmas palavras
Porque sempre nova é Sua Palavra
Infinita verdade aos poucos mostrada

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Variáveis

Variações são assustadoras.
Mudanças não costumam ser
Bem vindas a todos os lares
Nem louvadas por todos nós

Mas variáveis são amigas nossas
Conosco vivem sem conflito algum
E assim vivemos correndo o risco
De nos perder sem saber querer

É a loucura de uma vida perdida
No meio de escolhas aleatórias
Escolhas? Não creio que o sejam
O que de fora se nos impõe

Escolhas? Parecem-me todas iguais
Ilusões de solidez, de estabilidade
Uniformidade de pensamentos estranhos
Que não estranham a realidade

Vamos todos ficando iguais
E assim morreremos todos iguais
Iguais todos que a si mesmos usam
Usando a outros que também o fazem

Variações, as tememos todas
Mas Variáveis queremos, mesmo tolas
Não se pode ser de um só apenas
E nem mesmo dono de si mesmo só

Muitos querem que sejamos todos
Todos tolos que não se veem assim
Perdidos em si, presos em outros
Presos a si, pendendo a todos

São assim os que se fazem loucos
São assim os que se querem tolos
Usando os outros para seu prazer
E assim só servem ao prazer de todos

Ao prazer de todos que qual eles são
E não se percebem na contra-mão
Do natural progresso da racional razão
Irracionais se fazem pensando pensar

São todos racionais, a ciência diz
Todos esses que a si mesmos perdem
Mendigando alguns minutos de atenção
Mas a vida, amigo, o contrário prova

Variações, se possível, sejam poucas
Mas variáveis, as queremos todas
É mais fácil viver na indecisão
Que contra o acaso erguer a mão

Quando a mim, não quero viver assim
Não ficarei sentado esperando o fim
Não verei a vida passar por mim
Sem que por ela eu tenha passado

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Linguagem

A linguagem é meu limite. É fácil esbarrar nas bordas das palavras, sempre querendo dizer mais do que podem. Quisera ver-me livre desses limites, falar com Jesus sem palavras, sem gestos, sem olhares, livre dessas mediações, dessas caixas que podem conter tão pouco, por onde digo tão pouco, por onde ouço tão pouco.

Traduções, imagens, símbolos, limites que se impõem à tão simples necessidade de comunicação, nunca plenamente satisfeita, mas sempre presa nos mesmos limites, nos símbolos que não podem comunicar o todo. A arte é uma tentativa de romper esses limites, insinuando à razão significados que a transcendem, incitando a imaginação a buscar os significados ocultos nas insinuações.

A arte é algo que Deus deu ao homem para aproximá-Lo de si, para que rompesse seus próprios limites e vivesse com os pés no chão e o coração no Céu. Limites rompidos e obedecidos, paradoxo que define bem a liberdade que Deus oferece. Por isso Deus é tanto mais crível quanto mais é incrível, e nós O conhecemos e cremos assim, cada vez que o que não somos capazes de pensar se nos mostra com tanta facilidade que nossa razão se rende, vencida pelo Deus que a ultrapassa, indo além do que ela pode alcançar de mais simples e de mais elevado.

terça-feira, 20 de abril de 2010

Oração

Senhor Jesus, amado de minha alma, Tu que amas a todos e assistis os que a Ti recorrem, ouvi a oração deste pobre pecador que ousa dirigir-Te estas palavras com lábios impuros, que de Ti se aproxima com as vestes manchadas de sangue. Sei, não sou digno de aproximar-me de Ti, e meus méritos são poucos para que possa receber de Ti qualquer coisa que peça. Igualmente insuficientes seriam minhas súplicas, porque sou fraco e incapaz de orar sem cessar, como exigis que orem os que desejam receber de Ti as Tuas graças. Por isso, mesmo abatido e humilhado por minhas faltas, ouso pedir a intercessão de Tua mãe Santíssima. Sei que, se ela pedir por mim, sua oração será atendida, pelos méritos que em Tua bondade e liberalidade lhe concedeste por Tua encarnação, e também porque ela, uma vez ao Teu lado no paraíso, não pode cessar de rogar por todos. Sei, ela está viva, ao Teu lado, e tudo Te pode pedir. Ela, sim, ora sem cessar por todos os que queres salvar!

Maria Santíssima, mãe de meu Salvador, Jesus Cristo, peço-Te que cuides de mim todos os dias de minha vida, e que rogues a Jesus, Teu filho e Senhor, nosso Deus amado, que me conceda a graça da fidelidade e da perseverança, sem as quais ninguém pode ser santo, como Ele mesmo deseja que sejam os que Ele remiu com Seu preciosíssimo Sangue. Salva-me de minhas fraquezas, doce Mãe de Deus, e conserva-me sempre perto de Teu divino filho, Jesus. Assim seja.

terça-feira, 13 de abril de 2010

Poesia

Pensava escrever como fazer o que quero, libertar-me das algemas do tempo e espaço e vagar por caminhos vagos, abstratos, tocando de longe o que julgava real, concreto, aproximado. Mas de improviso outro olhar tomou de assalto o meu, tão curto, limitado, como forasteiro perdido, fugido, sempre estrangeiro.

Penso agora escrever com mais liberdade que no tempo das fantasias, porque andava perdido e entendia errado o que fazia certo, e, por isso, não sabia fazer o que certo poderia ser, até que um dia nada seria certo e nem o poderia conceber. Escrever para mim agora é estar fora, estando dentro, vagar por todos os lugares, ser de algum modo onimpresente naquilo que me toca ou me tocou, e que ainda me tocará. É como experiência que ainda não chegou, um passado que se increve no que ainda se escreve, e se vive. Escrever é ser livre do tempo e espaço, porém estando neles ainda encerrado, mas não enterrado.

Quero agora trilhar e traçar os mesmos caminhos outrora perdidos, perdedores de almas desavisadas como, por vezes, a minha é, mas agora seguro por um guia que me ditará o ritmo de meus passos. Seguirei, é verdade, sem direção e sentido aparente, mas não há liberdade se já de antemão me prendo ao que eu quero fazer.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Tempo

Senhor, que é o tempo, senão martírio lento, memória do que ele mesmo esconde, enquanto passa, lento e longo e a um só tempo também curto, muito curto?

Mas quando estou contigo, Jesus, parece desaparecer todo tempo, e é ao mesmo tempo curto o tempo que tenho contigo. A Tua eternidade me convida a permanecer, a demorar-me mais no que não pode demorar. É o tempo que se torna eternidade enquanto se esconde atrás de Ti e alimenta a esperança de que ele mesmo não volte. É o tempo que também Te esconde para que eu Te deseje mais enquanto espero, e esperando parece mais longo o tempo que tenho pouco para buscar-te, e te busco enquanto meu tempo acaba, escondendo-se a pouco e pouco até que morra, enfim. E, morrendo eu, estarei eternamente contigo no fim de todo tempo.

Mas é longo também o tempo enquanto espero e não Te tenho, enquanto não acaba o pouco tempo que tenho, que espero que não me seja pouco, para fazer tudo que devo para Tua eternidade gozar.

quarta-feira, 17 de março de 2010

Voltar

Deus me manda voltar ao início, refazer os caminhos por onde passei distraído e perceber os detalhes que poderiam ter-me ensinado mais. Mas é difícil encontrar um sentido claro para as coisas que faço movido por sentimentos assim, nostálgicos e, ao mesmo tempo, inovadores. É a novidade do retorno ao passado sem voltar lá, pisar caminhos antigos com as cores de hoje. E que a vida seja colorida de novo!

Deus me manda voltar ao início, e chego a tocar até mesmo o cansaço que me pesava quando pela primeira vez passei por aqui, quando despreparado e distraído percorri os caminhos que me trouxeram até onde estou. Estou nos sentimentos que me prendem, sentimentos que nunca são repentinos, mas costumam ser cultivo e, às vezes, displicência. Distração, obstáculo maior que todos os outros que encontrei, obstáculo invisível que me fez chegar atrasado, que me fez ter de voltar. E espero não encontrá-la de novo.

Deus me manda voltar ao início. E, pensando bem, é essa a ordem natural das coisas, já ilustrada naquela palavra de que todos avidamente fugimos: és pó e ao pó voltarás. Voltar ao início é refazer os caminhos antigos e trilhá-los ao contrário, é passar por eles duas vezes, é a um só tempo voltar e seguir, descansar e caminhar, ver, rever, conhecer, reconhecer, é experiência, saudade que se faz conhecimento, novidade, ensinamento, recordação do que ainda não se sabe. Deus me manda chegar à páscoa, epifania da felicidade que só nos chega no início.

quinta-feira, 4 de março de 2010

Mundo mudo

Vivo num mundo mudo
Vivo num mundo sem voz
A monotonia envolve meus dias
Pouco muda no horizonte da vida

Pra quê dizer o que penso
Se há outros que pensam por mim?
Vivo perto de quem pensa assim
De quem assim pensa viver

Há tantos que dizem de si para si
"O que faço é feito por todos,
Pra quê admitir o meu erro?"
Quanto a mim, temo morrer assim

Mas aqui é tudo sempre igual
Por aqui todo mal é normal
A monotonia envolve meus dias
Pouco muda no horizonte da vida

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Virtude

Quisera ser mais virtuoso para ter mais com que louvar o Senhor. De minha parte, pouco posso dizer que faço por Cristo, porque minha vontade em muito ainda prevalece naquilo que me ocupa ou distrai. Minha alma frequentemente se acha estorvada por demasiadas ocupações que somente a entorpecem e lhe retiram as luzes que lhe concede o Senhor. Oh, se tivesse encontrado mais cedo o bem que há em estar com Jesus, e não tivesse tido tempo de cultivar tantos males que hoje me impedem de gozar sempre da liberdade que Ele me quer conceder! Como me pesa hoje minha natureza viciada com tantos luxos que eu mesmo me concedi, deixando várias vezes o serviço de Deus por bagatelas, apenas pelo prazer de praticar aquilo que não me é lícito.

Mas aprouve ao Senhor resgatar-me antes que me perdesse para sempre. Hoje sofro por não poder gozar da mesma felicidade que os santos, mas meu sofrimento me tem sido causa de indizível felicidade, por encontrar nele a misericórdia do Senhor a cuidar de mim dia a dia, sem esquecer-se de mim um instante sequer. Assim aprendi de Jesus que justos e pecadores são dignos de misericórdia, porque nem mesmo o mais justo dos homens é livre de pecado (cf. Rm 3, 23). Se o justo peca sete vezes por dia (Pr 24, 16), também ele depende da misericórdia de Deus para salvar-se. Por isso alegro-me mesmo quando caio em grandes faltas, porque na queda recebo de Deus a graça de empenhar todas as forças de minha alma em remediar meu pecado em vez de lamentar-me pela culpa cometida.

Prefiro gloriar-me da misericórdia de Deus que de minhas virtudes, "para não acontecer que, ofuscado pela vaidade, venha a cair na mesma condenação que o demônio". (1Tm 3, 6)

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Silêncio de Deus

O silêncio de Deus é alimento para a humildade que precisamos cultivar. Nossa alma sempre precisa de tempos de purificação, e as oscilações de ânimo e sentimentos que somos obrigados a suportar são como a sucessão dos tempos litúrgicos, caminho de salvação à imagem daquele empenhado pelo povo na Antiga Aliança.

O que Deus pretende deixando-nos suportar duríssimas penas sem o consolo de Suas promessas e de Seu cuidado sensível? Ele pretende dar-nos liberdade, porque devemos escolhê-lo por Ele mesmo, não por virem Dele os melhores presentes. Ele certamente sabe das nossas mais profundas necessidades, e por isso nos nega muito do que queremos, concedendo-nos viver no deserto por algum tempo, para inscrever mais profundamente em nosso coração a confiança na eternidade de Sua Palavra, que não precisa ser reiterada quantas vezes quisermos, mas deve, sim, ser sempre acreditada.

Acreditamos em Deus? Confiemos em suas promessas. Quem pode determinar prazos para que Deus cumpra o que prometeu? Deus não prometeu àqueles que pedem qualquer coisa em Seu nome que seriam atendidos imediatamente, mas apenas que seriam atendidos. Que importa se a consolação venha somente na morte, se a ela de qualquer modo chegaremos, e das aflições desse mundo poderemos levar os méritos? Soframos, pois, para merecermos mais.