segunda-feira, 27 de abril de 2009

Relógio

Perdi meu relógio, e meu tempo tentando encontrá-lo; encontrei, porém, uma estranha liberdade, tranquilidade de estar fora da circunferência dos ponteiros, sem aquele peso insignificante no meu braço a constantemente atar-me às rédeas do tempo. O tempo é o jeito que encontramos de entender a vida aqui neste mundo, um conceito demasiado abstrato para que demos a ele poder e permissão de nos aprisionar. A eternidade começa aqui, quando nos libertamos das restrições que os pequenos sucessivos instantes nos impõem, e vivemos o presente como dia final, fazendo do hoje o altar de nosso sacrifício. O seguimento de Jesus é a própria preparação. Deus chamou um pescador analfabeto para guiar sua Igreja; e ele, que fez? Lamentou-se por não estar preparado? Não! Levantou-se e seguiu o Mestre que acabara de conhecer, ocupou-se com o presente, não pôs os seus olhos no que ainda haveria de ser, não se fixou nas possibilidades vagas de um futuro absolutamente imprevisível.

Nunca pensei que um relógio perdido tivesse tanto a me dizer! E eis aí o que ele despertou em mim! Aquele relógio foi do meu pai, e eu o carregava comigo inconscientemente, talvez, como recordação, memorial, algum tipo de alívio para a saudade sempre presente. Porém, o valor do meu pai não estava no relógio, e algo mais eu poderia aprender com o objeto que ele me deixara, mas sua utilidade velava seu significado. Pode parecer estranho, mas ter um relógio sempre ao alcance dos olhos pode tornar-se um problema, uma prisão.

Eu sei, não são sentidos novos que me foram ensinados, mas significados antigos, sempre atuais, que facilmente permanecem escondidos por trás dos ponteiros. Não quero mais esconder as infiltrações nas paredes de minha casa pendurando calendários e relógios na frente delas. Metáfora estranha? Concordo. Mais estranha, porém, é a vida que se perde na tediosa repetição das horas.

domingo, 19 de abril de 2009

Olhares

Olhares, gestos discretos que têm o poder de nos penetrar a alma e arrancar de nós os significados que escondemos de nós mesmos. Há pessoas que são para nós como um filtro por onde passamos a vida, e em cujos olhos podemos ver refletida a verdade do que somos sem nos envergonharmos disso, por mais sujos que estejamos. Sinceridade, virtude que tanto estimo nos amigos, expressão característica do Amor que nos ensina que verdade e liberdade são dois conceitos que se entrelaçam até se tornarem inseparáveis, quase indistintos.

Olhares apressados ignoram os detalhes; amigos sabem demorar, sabem contemplar a vida para extrair dela o que lhe é essencial. Olhares assim são divinos, reflexos de Deus a iluminar-nos os passos, a encher-nos de coragem quando não vemos aonde vamos, onde pisamos. Amigos, pessoas que, apenas despontam em nossa lembrança, já fazem despertar o melhor que em nós descobriram, desenterraram, restauraram. Amigos têm o dom de revelar-nos as preciosidades que carregamos em nós por trás de nossos defeitos e limites, nos fazem perceber que é bom ser limitado, é bom precisar ter alguém por perto, mas, ao mesmo tempo, colocam o amor sempre acima das necessidades.

A todos os meus amigos quero deixar aqui minha sincera gratidão, pela presença tantas vezes silenciosa, mas que sempre produz muito fruto dentro de mim, que me fazem sorrir quando minhas razões parecem ter-se desfeito em minhas mãos. Amigos que me trazem felicidade com sua simples presença silenciosa, escondida ou com muitas palavras e sorrisos, porém, sempre sincera.

segunda-feira, 13 de abril de 2009

Segredos

Gosto dos símbolos, das metáforas, porque há realidades às quais palavras não podem remeter diretamente; eterna tentativa de descrever a vida, sublime canto de louvor ao inefável, silêncio e contemplação de realidades que os olhos não alcançam. Gosto das palavras que não dizem tudo, que deixam pistas para que meu coração encontre o caminho, que indicam direções para que o sentimento encontre o significado, não nas palavras, mas na própria realidade que elas indicam.

Segredos parcialmente revelados, que dão espaço ao esforço particular de ir ao encontro, de investigar, conhecer, experimentar. Mistérios, significados que nos penetram, que nos precedem em todo conhecimento, que nos significam à medida em que por nós são conhecidos, porém nunca totalmente compreendidos.

Vida que nasce da morte, mistério estranho, realidade que nosso curto entendimento não pode alcançar, que nosso coração não conhece pela experiência imediata e instantânea, mas por testemunhos vários de palavras escritas por outros como nós, outros que não nos podem mais falar, em cujos olhos não mais podemos ver os sorrisos que viram a Ressurreição; testemunhos distantes demais, dizem, mas prefiro considerá-los próximos. Ressurreição não é fato isolado, reservado aos que morrem, mas prefigurado, preparado, construído pelos que ainda vivem neste mundo.

Neste estado de constante morte, de permanente passagem, quero aprender do Cristo o que significa procurá-lo entre os vivos, não estar eu também entre os mortos. Quero fazer de meu caminho trabalho de construção da vida, esforço de remover a pedra que fecha o sepulcro, para que no fim possa atender à voz do Cristo que me chama: "Vem para fora!" (cf. Jo 11, 43)

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Poetizando

A mística e a poesia sempre me pareceram íntimas. Uma é alma, a outra, revelação. Imagens, alegorias, metáforas, símbolos, moedas de um mesmo tesouro, revelações de um mesmo único mistério, o espírito. A tentativa de descrever sentimentos é uma preocupação constante nossa, e é às vezes frustrante o não saber, a falta de voz, a falta de palavras que digam o que queremos dizer. Poetizar é deixar que voem livres melodias às vezes silenciosas de palavras que nem sempre encontram destino certo, que partem sem saber aonde vão, ou como vão, com o desejo oculto de apenas serem o que são, sementes que ainda brotarão. É manhã que surge sem esforço, sol que nasce sem que o mandemos subir. Poesia é exercício, é escrever sem pretensão de saber, mas de apenas ser, é saber-se inculto, pela própria virtude mudo, com o simples desejo de comunicar. O que sei que não o saibam outros melhores que eu, que viveram desde antes que eu fosse, que disseram o que agora digo em palavras passadas que agora encontram eco em sentimentos de outro coração, que em mudas canções quer propagar o mesmo canto dos mesmos sentimentos? Experiências que permanecem, que prevalecem, verdades que mais falam de nós que as palavras com que tentamos exprimi-las, veladas, escondidas, resplandecentes atrás de véus, vultos luminosos que um dia verão a Luz.